terça-feira, 1 de março de 2011

Morte de Deus e Modernidade (Séc.XIX)

“Deus está morto”: o anúncio Nietzschiano como crítica à modernidade
José Márcio Carlos

Introdução
            Percebe-se que estudar e trabalhar um determinado tema requer certo aprofundamento e empenho, principalmente quando este está vinculado ao conjunto de temas de Friedrich Wilhelm Nietzsche[1]. Filósofo muito estudado, visto que suas reflexões filosóficas, além de profundas, inquietam muito as estruturas humanas, em especial aquelas que se referem à tradição.
            Como tema proposto para este trabalho, foi escolhido a questão da morte de Deus. Questão esta muito discutida nos dias atuais, uma vez que, até então, Deus era visto como o fundamento e sentido de todas as coisas existentes. No entanto, uma vez que o tal questão é ampla e pode ser refletida em várias versões, buscar-se-á refletir tal assunto a partir do fragmento de uma de suas obras: a “Gaia ciência”. O objetivo é constatar e refletir o anúncio de Nietzsche da morte de Deus e apontar a grande causa deste, ou seja, a modernidade e suas novas perspectivas para o pensamento.

1. “Deus está morto”: pressupostos históricos causadores do anúncio Nietzschiano
            A expressão “Deus está morto” é uma famosa afirmação Nietzschiana que levou muitas pessoas a pensarem e refletirem tal questão. Entretanto, para que este anúncio pudesse acontecer era necessário que houvesse uma causa bem relevante que, de fato, motivasse Nietzsche a proclamar tal expressão.
            Sendo assim, para que haja um entendimento e uma compreensão do “por que” Nietzsche tomou a atitude de declarar Deus como morto, é necessário, então, descobrir a causa que gerou tal ousadia.
Nietzsche é pensador e filho de seu tempo. Durante o seu processo de investigação e reflexão filosófica da realidade como um todo, ele constata que com o surgimento de um novo contexto histórico, ou seja, o início e nascimento da modernidade, esta começa a manifestar e propagar certas características (modernas) que tendem a vir com um espírito de repulsa às questões ligadas à tradição.

Onde tem origem, segundo Nietzsche, a modernidade? Nos filósofos iluministas do século XVIII e sua crítica da tradição e da autoridade; na filosofia de Kant, que estabelece os limites do conhecimento e a impossibilidade de o homem conhecer o supra–sensível, a coisa-em-si; na ciência positiva, que se torna independente da teologia; na revolução Francesa e sua defesa das “idéias modernas” de igualdade, liberdade e fraternidade; na arte romântica que demonstra simpatia pelo que é sofredor, infeliz e doentio[2].

            Rüdiger Safranski, para confirmar ainda mais esta hipótese de que a modernidade é a grande incentivadora do anúncio da morte de Deus, constata características que confirmam tal afirmação. E estas são: as ciências estão avançando. O mundo é explicado por “leis” mecânicas e energéticas. Não se procura mais significado e sentido, mas sim como tudo funciona, como se pode entender e utilizar os modos de funcionamento. A campanha de Darwin habituou o público à idéia da evolução biológica, o qual diz que não existe uma evolução da vida seguindo um objetivo certo, mas acasos da mutação e a lei da jângal da seleção determinando o processo da história natural[3].
            Enfim, o que se percebeu a partir do século XVIII e, principalmente, do século XIX é que Deus perdeu a sua importância não só para a natureza, mas também para a sociedade, a história e o indivíduo. Na segunda metade do século XIX podia se perceber a sociedade e a história como algo que se pode entender em si mesmo e explicar. Sendo assim, a conclusão chegada era a de que a hipótese de Deus tinha se tornado supérflua[4].

1.1. O anúncio da morte de Deus
            Percebe-se que é através da modernidade que se deve procurar o sentido da expressão: “Deus está morto”. Entretanto, não se deve confundir esta expressão como uma propagação de um ateísmo ou propriamente falando de uma doutrina de Nietzsche[5]. O seu “objetivo, no entanto, não está em querer provar ou negar a existência de Deus, como fazem os ateus, uma vez que o pensamento Nietzschiano não tem uma preocupação epistemológica, mas quer aqui, mostrar como e porquê surgiu e desapareceu a crença em que haveria um Deus”[6].
Esta expressão na obra de Nietzsche apresenta várias versões. Contudo, uma das mais importantes é o aforismo 125 da “Gaia ciência”, uma vez que é “o primeiro texto explícito de Nietzsche sobre a questão”[7]. O fragmento no que há um desenvolvimento de tal acontecimento constatado está intitulado “O homem louco” (“O insensato” em outras traduções). Nele Nietzsche começa dizendo o seguinte:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – Gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? (...) Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodressem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob nossos punhais – quem nos limpará este sangue? [8]


Nestas palavras Nietzsche vem expressar, em primeiro lugar, o quanto o homem moderno é o grande culpado pelo desencadeamento desta constatação; e em segundo lugar, o quanto essa questão reflete-se na tradição.
Tendo em vista os pressupostos históricos (modernos) causadores do anúncio, percebe-se que o homem moderno é quem inaugura o processo de secularização, ou seja, exclusão de Deus de seu papel de norteador da vida humana. Sendo assim, Deus passa a ser visto como aquele que se encontra fora do pensamento, das decisões e das ações do mundo moderno. Daí, o fato de Nietzsche deixar bem claro na sua afirmação sobre a morte de Deus na “Gaia ciência”: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” [9]. Enfim, a morte de Deus, como diz Roberto Machado, é “(...) o diagnóstico da ausência explícita de Deus no pensamento e nas práticas do ocidente moderno (...)”[10].
            Sendo assim, percebe-se que, uma vez que Deus já foi o condutor da vida humana, com essa mudança de caminho, de direcionamento, há um grande declínio cultural, isto é, a tradição, a qual sustentava a importância de Deus, entra em crise. Essa crise acontece pelo fato do discurso dela ser colocado em cheque, ou seja, o valor, o sentido e o fundamento da metafísica. Uma vez que esta é colocada em dúvida, também as suas ramificações são colocadas em dúvida: o discurso do sensível e do supra-sensível, do mundo verdadeiro e do próprio Cristianismo.
            Seguindo o comentário de Heidegger ao fragmento da obra “Gaia ciência” (125), Roberto Machado diz que “é o homem moderno que é o responsável pela perda de confiança em Deus, pela supressão da crença no mundo verdadeiro, originário da metafísica e do Cristianismo, pela substituição da teologia pela ciência, do sono dogmático pelo sono antropológico, do ponto de vista de Deus pelo ponto de vista do homem (...)”[11].

1.2. Da morte de Deus às conseqüências do descrédito com a metafísica
            Sendo assim, com a morte de Deus e com o descrédito da metafísica, é perceptível a visualização de que o mundo supra-sensível, o mundo metafísico foi desvalorizado e juntamente com eles, a “crença no Deus cristão perdeu o crédito (...)”[12]. Dessa forma, pode-se dizer que a fé em Deus, a qual servia de suporte à moral cristã, se encontra minada. Quanto a essas conseqüências, Roberto Machado reflete:

Em suma, a expressão “morte de Deus” é a constatação da ruptura que a modernidade introduz na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento divino. Significa, portanto, a substituição da autoridade de Deus e da igreja pela autoridade do homem considerado como consciência ou razão; a substituição do desejo de eternidade pelos projetos de futuro, de progresso histórico; substituição de uma beatitude celeste por um bem-estar terrestre (...)[13].

            Diante do que já foi refletido até agora, nota-se que a consciência que passa a ser amputada de agora em diante é a que o princípio em que o homem ocidental fundou sua existência desapareceu. Daí, consequentemente, é instaurado o niilismo[14]. E este é visto e chamado por Nietzsche como reativo, uma vez que é constituída uma reação explícita aos valores superiores instaurados pela criação do Deus cristão (o qual era considerado o fundamento da existência humana).
            Dessa forma, percebe-se que este niilismo, isto é, o vazio existencial é fruto da modernidade. Entretanto, o que ela talvez não soubesse é que, ao “jogar por terra” a tradição e todo o seu “sistema”, ela também estaria sendo afetada por este impacto histórico e filosófico, ou seja, a morte de Deus e suas conseqüências (ressaltando assim o niilismo). Nietzsche mais a frente irá levantar propostas de saída deste niilismo. No entanto, este trabalho se limitou a refletir até o início da constatação do niilismo. A proposta de aprofundamento do niilismo é questão para outros momentos de reflexão filosófica.
Enfim, fica assim, ao final deste trabalho, a crítica à modernidade, a qual em outros ramos históricos alcançou muitos avanços e progressos, no entanto, neste ramo histórico de cunho existencial e filosófico, levou a humanidade ao declínio e ao vazio.

Conclusão
            Ao final deste trabalho, depois de ter passado pelos aspectos históricos do início da modernidade, o que se pode concluir é que esta é a grande instauradora e causadora do anúncio da morte de Deus. Ao longo da reflexão, foi-se percebendo que as novas perspectivas propostas pelo homem moderno tendiam a fazer oposição à tradição. E uma vez que esta era considerada um grande pilar do ocidente, com o pensamento moderno, ela entrou em crise, pois o seu alicerce (metafísica, cristianismo, o discurso sobre o supra-sensível), que antes era considerado indiscutível, uma verdade absoluta, foi colocado em dúvida.
            Enfim, depois do nascimento da modernidade, a tradição filosófica metafísica não é mais a mesma. Ela se tornou um alvo de críticas e até mesmo de ceticismo. A partir disso, Friedrich Nietzsche foi ao longo de sua vida desenvolvendo seu filosofar. Dessa forma, ao lê-lo, percebe-se uma “profunda aceitação” das conseqüências causadas pela modernidade, isto é, a morte de Deus, o niilismo, por exemplo, são considerados importantes chaves de leitura de seu pensamento.


Referências bibliográficas
GOMES, Eliseu Donizete de Paiva. Uma leitura do niilismo nietzschiano como história do ocidente. Instituto de Filosofia são José. Mariana, 2004. (Trabalho de conclusão de curso de Filosofia).
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
MACHADO, Roberto Cabral de Melo. “Deus, Homem, Super homem”. Revista Kriterion 89 – volume 35, Belo Horizonte, 1994, p.21-23.
MONDIN, Batista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. Tradução de Benôni Lemos. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 1983. v.3. p.75-76.
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001.



[1] Friedrich Nietzsche nasceu em Röcken, na Alemanha, no dia 15 de outubro de 1844. Estudou filosofia nas Universidades de Bonn e Lípsia. Em seu primeiro tempo foi grande admirador de Schopenhauer e de Wagner; mais tarde afastou-se de ambos por causa do ascetismo do primeiro e da orientação cristã do segundo. A obra Humano, demasiadamente humano, publicada em 1878, marca o seu afastamento de Wagner e Schopenhauer. Depois da láurea lecionou por algum tempo em Basiléia, mas, por motivos de saúde, renunciou à cátedra em 1879. Em 1882 publicou A gaia ciência, da qual esperava grande sucesso, mas a obra passou quase despercebida. Esta desilusão e outra, mais grave ainda, causada por uma aluna sua, com a qual ele queria casar-se, mas que não correspondeu ao seu amor, agravaram rapidamente a sua enfermidade mental. Escreveu obras importantes, como: Além do bem e do mal, A genealogia moral, Assim falava Zaratustra e Vontade de Potência. Morreu em 25 de agosto de 1900 (MONDIN, Batista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. p.75-76).
[2] MACHADO, Roberto. Deus, Homem, Super homem. p.21-22.
[3] SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia. p.281.
[4] SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia. p.281
[5] MACHADO, Roberto. Deus, Homem, Super homem. p.22.
[6] GOMES, Eliseu Donizete de Paiva. Uma leitura do niilismo nietzschiano como história do ocidente. p.168.
[7] MACHADO, Roberto. Deus, Homem, Super homem. p.22.
[8] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. Fragmento 125, p.147-148.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. Fragmento 125, p.148.
[10]MACHADO, Roberto. Deus, Homem, Super homem. p.22.
[11] MACHADO, Roberto. Deus, Homem, Super homem. p.23.
[12] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. Fragmento 343, p.233.
[13] MACHADO, Roberto. Deus, Homem, Super homem. p.23.
[14] O niilismo segundo Nietzsche apresenta-se em quatro modos: reativo, passivo, ativo e negativo, o qual dá origem aos três primeiros citados. No entanto, é o niilismo reativo que se está destacando neste trabalho, visto que este é considerado o niilismo moderno.

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