terça-feira, 1 de março de 2011

Requisitos para entender a Sagrada Escritura corretamente!

A Sagrada Escritura e a sua Realidade Teândrica
José Márcio Carlos

            Estudar a Sagrada Escritura é, sem dúvida, perceber que desde os primórdios da humanidade Deus sempre quis estar em profundo relacionamento com o ser humano. Sendo este a mais bela criatura de Deus, uma vez que é dotado de razão, há muitas razões para que ele queira estar intimamente em sintonia com Deus e vice-versa.
            Como resultado desta relação recíproca, o homem se sente no desejo de anunciar tal acontecimento que, ao ser bem experimentado e vivido, o marca intensamente e lhe impulsiona a testemunhar tudo o que experimentou e interiorizou. Sendo assim, a princípio, isso acorrera de forma oral, isto é, a preocupação maior estava na partilha e no diálogo. A transmissão era feita de forma que a fixação ficara a cargo do receptor.
            No entanto, a via oral de transmissão da experiência com Deus, que se tornara para todo o gênero humano “palavra de Deus”, pois por ela o homem podia perceber os sinais da graça divina, que age frutuosamente naqueles que se deixam conduzir por sua  mensagem anunciada, trazendo assim ensinamentos, purificação, libertação e amadurecimento dos seres humanos; também se tornara um limite e uma “desvantagem”, ou seja, uma vez dito, muito se pode absorver da palavra proclamada e muito se pode perder.
            Neste sentido, o homem sente a necessidade também de registrar toda a revelação divina a ele confiada, a fim de que sua mensagem seja anunciada e sempre recordada. Porém, vale frisar que tudo o que fora sempre registrado não fora feito com a pretensão de ir além de sua própria realidade, embora hoje em dia se tenha a bíblia (Sagrada Escritura), a qual ajuda a responder os sinais de Deus na atualidade.
Antes era escrito em pergaminho, papiro e outras formas de fixar a escrita, a fim de responder às necessidades de uma época, de uma cultura, de um determinado povo. Contudo, ao haver a possibilidade de transportá-la para realidade atual, isso faz o homem verificar e demonstrar que cada cultura, com sua realidade e identidade próprias podem ser receptora e emissora da palavra Deus.
Deus quer falar a todos os povos, sobretudo se valendo da condição e disponibilidade dos homens. Daí surgir os chamados hagiógrafos, isto é, os escritores sagrados, os quais são aqueles que se dispuseram a ir além da transmissão oral da palavra divina, valendo-se agora da escrita.
É interessante perceber que isso é uma questão muito séria e relevante. Por exemplo, ao citar o livro do profeta Isaías 55,6-11, nota-se que ai há um profundo testemunho de fé que evoca a certeza da eficácia da palavra de Deus. Neste período narrado há uma descrição de um fato vivido por um povo, num determinado contexto histórico: o exílio da Babilônia. O profeta anuncia a esperança dada pela promessa Divina ao povo, a fim de expressar que o que Deus diz, Ele cumpre.
Entretanto, como os escritos sagrados chegaram até a essa geração presente (Século XXI), vale refletir que o ponto fundamental que identifica um texto como bíblico e sagrado é o seu caráter de inspiração, em que pela fé há a garantia da ação do Espírito Santo. Esta questão é a característica singular e referencial para que o mesmo não seja visto apenas como obra humana, resultado de esforços de um hagiógrafo, ou também, por outro lado, apenas como se fosse um ditado direto, letra por letra, de Deus e que o homem só teve a obrigação de escrever.
Essa diferenciação é fundamental para que não haja o perigo de cair numa compreensão redutiva e equivocada de duas correntes que se dizem capazes de interpretação da Sagrada Escritura: o racionalismo e o fundamentalismo.
De um lado há o racionalismo, o qual defende a pretensão de entendimento da Sagrada Escritura unicamente por meio da razão e da ciência. Sendo uma composição de textos escritos por mãos humanas, isso a torna para o ambiente científico uma mera invenção, uma mentira, algo sem grande relevância acadêmica, visto que não se pode comprovar cientificamente. Mas, deve-se recordar que a Escritura não é um conjunto de crônicas, e sim um texto que fora feito sob o recurso do gênero literário para tentar transmitir as palavras divinamente reveladas.
Do outro lado, há o fundamentalismo, que é oposto do racionalismo, por que é uma postura que evoca a infabilidade da Sagrada Escritura, uma vez considerada como palavra de Deus revelada. A ótica fundamentalista se depara com o texto bíblico e o interpreta somente ao “pé da letra”, uma fidelidade cega às palavras escritas, como se cada palavra tivesse sido ditada minuciosamente por Deus, assim como pensam e defendem os mulçumanos. Daí ficar preso a detalhes e ignorar, por exemplo, os problemas que o texto bíblico comporta em sua formulação original (Grego, Hebraico e Aramaico) e na sua transmissão ao longo da história.
Neste sentido, tais incoerências interpretativas da Sagrada Escritura só poderão ser convertidas se, de fato, houver o entendimento coeso da mesma, levando em conta tanto a sua formação, isto é, os caminhos e métodos utilizados pelo hagiógrafo na escrita, quanto à intenção do mesmo.
A resposta para estas indagações devem se pautar na compreensão de que a Sagrada Escritura possui uma realidade Teândrica, ou seja, tem o seu lado humano, mas também o seu lado divino. O texto bíblico é um registro literário das experiências históricas com Deus, um testemunho de fé. Mas, o que legitima essa afirmação?
Sem dúvida, o papel do magistério da Igreja terá grande importância, pois, ao discernir o seu cânon, percebera que o que dá, realmente, legitimação e credibilidade às palavras proferidas e escritas pelo escritor sagrado é a inspiração divina.
Daí, a necessidade da retomada do sentido da expressão “inspiração”. Assim fala o documento do vaticano II: “As coisas divinamente reveladas, que se encerram por escrito na Sagrada Escritura, foram consignadas sob inspiração do Espírito Santo. Pois, a Santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros completos tanto do Antigo como do Novo testamento (...) porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo” (DV 11).
Por esse motivo, nota-se que o concílio chega a uma clareza profunda da dimensão teândrica da Sagrada Escritura: “Na redação dos livros Sagrados, Deus escolheu homens, dos quais se serviu fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que Ele próprio quisesse” (DV 11).
            E dessa forma a Sagrada Escritura se torna acessível ao gênero humano, pois se articula a partir da suas condições, ou seja, dos seus alcances e limites, mas como escrito autêntico, pois está plenamente sob a ação de Deus, de seu Santo Espírito. Claro que, ao pensar o caráter acessível das Escrituras, devem-se recordar dois princípios que norteiam uma boa interpretação das mesmas, a fim de que seu entendimento não se torne algo simplesmente subjetivo, mas, guiado, sobretudo, pela mesma luz divina e inspiradora das palavras proferidas e escritas pelos hagiógrafos.
            Dois princípios fundamentais que ajudam muito na interpretação e no entendimento dos escritos divinos são: o Agostiniano e o Jeronimiano.
O princípio Agostiniano diz o seguinte: “Na Escritura Deus fala por meio de homens e de modo humano”. Para se tomar a sério a natureza divino-humana da Escritura, deve-se compreender a sua humanidade. Isso porque não há possibilidade ordinária de acesso à palavra escrita de Deus senão através do conhecimento da palavra humana da mesma. Deve “(...) o intérprete da Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus nos quis transmitir, investigar atentamente o que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender e aprouve a Deus manifestar por suas palavras” (DV 12).
Vale frisar estes dois elementos dessa citação se trata de uma conexão, pois não se supõe uma distinção e nem uma ruptura entre um e outro. A palavra de Deus se reveste na Escritura de linguagem humana e o que Deus pretende comunicar fica refletido no que os hagiógrafos pretendem transmitir.
Neste sentido, nota-se a necessidade de dar ao trabalho exegético uma dimensão teológica. Quer dizer, cabe a exegese bíblica fazer um estudo aprofundado dos aspectos humanos da Escritura, mas sempre sublinhando o seu caráter teológico e não cronista.
“Ora, é preciso que o intérprete pesquise o sentido que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo, confirme a situação de seu tempo e de sua cultura, quis exprimir e exprimir por meio de gêneros literários então em uso” (DV 12).
Pois, ao manifestar sua experiência com Deus, o ser humano o transmite em sintonia com seu contexto, com sua visão de mundo. Embora Deus queira falar a todo gênero humano, sua mensagem e ensinamento só se darão em sintonia com as capacidades e limites humanos. E mais, cada cultura possui seus jogos de linguagem, experiências vividas próprias de seu estilo de vida.
Contudo, vale observar que o critério da intenção do autor não é o único para uma correta interpretação. Daí, a importância de se observar também o princípio Jeronimiano: “A Escritura deve ser lida no mesmo Espírito em que foi escrita”. A luz do Espírito Santo é o requisito singular, necessário e indispensável para um bom entendimento do Escrito Sagrado (bíblico), do que Deus deseja comunicar ao gênero humano por via da linguagem humana.
Embora a compreensão do ponto de vista humano, científico (pelo método histórico-crítico) ou não, da Sagrada Escritura seja fundamental, reduzir-se somente a esta leitura da mesma pode incorre em erro e num reducionismo. O mesmo Espírito Santo que inspirou e suscitou o coração do hagiógrafo deve também orientar o leitor e o intérprete da palavra de Deus.
Todas as técnicas humanas não são capazes de chegar plenamente ao núcleo do Escrito Sagrado, isto é, ao mistério, e nem mesmo ao seu sentido mais completo, o qual se dá na e pela revelação. A assimilação da mensagem divina exige uma postura de fé, uma vez que nasceu da fé e para a experiência da fé. E mais, não sendo a Sagrada Escritura um conjunto de livros de crônicas, isso evidencia ainda mais o seu caráter explicativo: explicitar o conteúdo teológico (fé e revelação).
Dessa forma, se poderá perceber a mística da interpretação, quer dizer, o mesmo Espírito que inspirou os autores sagrados atua nos que lêem ou interpretam a mensagem divina. E assim a inspiração continua, mesmo que de maneira qualitativamente diferenciada.
 “Deus dispôs com suma benignidade que aquelas coisas que revelara para a salvação de todos os povos permanecessem sempre íntegras e fossem transmitidas a todas as gerações” (DV 7). Ao ler um texto sagrado, o leitor ou interpretante deve ter consciência de que o mesmo possui um sentido pleno (sensus plenior). É provável que o hagiógrafo não fosse consciente daquilo que estava apresentado, de maneira implícita, numa determinada afirmação, quando ela é relacionada ao conjunto de toda revelação de Deus. A mensagem divina atua até mesmo além do que o hagiógrafo quis dizer.
Sua compreensão só se dará se levar em conta a sua natureza divino-humana. Ela é imanente e transcendente. Assim deve acorrer na leitura e na análise ao longo das gerações, pois a Sagrada Escritura possui um conteúdo e uma unidade. Ela contém um sentido literal e espiritual. Literal porque há uma mensagem objetiva e direta que Deus deseja passar por meio de hagiógrafo. E espiritual, pois a mensagem deve remeter o leitor e interpretante a uma compreensão das realidades de que se está falando (sobretudo realidades eternas). Daí, o uso do sentido alegórico (por meio de símbolos), moral (relatos que devem conduzir-nos a um justo agir) e anagógico (refletir sobre realidades em sua significação eterna).
Mas, acima de tudo, mesmo que o ser humano se utilize de todas as técnicas possíveis de interpretação ou se apresente com uma postura de fé sincera, mesmo assim haver sempre uma reserva de sentido (Plus-valia), ou seja, nunca o gênero humano esgotará a mensagem do texto bíblico e sagrado. Entretanto, poderá se embebedar das graças de Deus ao deixar que a sua palavra haja por inteiro e eficazmente em sua vida.

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